sexta-feira, abril 27, 2007

Portalegre - 19 Maio

Mão Morta :: Os Cantos de Maldoror

A partir de “Os Cantos de Maldoror”, a obra-prima literária que Isidore Ducasse, sob o pseudónimo de Conde de Lautréamont, deu à estampa nos finais do séc. XIX, os Mão Morta, com os dedos de alguns cúmplices, estruturaram um espectáculo singular onde a música brinca com o teatro, o vídeo e a declamação.

Aí se sucedem as vozes do herói Maldoror e do narrador Lautréamont, algumas imagens privilegiadas das muitas que povoam o livro, sem necessidade de um epílogo ou de uma linearidade narrativa, ao ritmo da fantasia infantil – o palco é o quarto de brinquedos, o espaço onde a criança brinca, onde cria e encarna personagens e histórias dando livre curso à imaginação.

Em similitude com a técnica narrativa presente nos Cantos, a criança mistura em si as vozes de autor, narrador e personagem, criando, interpretando e fazendo interpretar aos brinquedos/artefactos que manipula as visões e as histórias retiradas das páginas de Isidore Ducasse, dando-lhes tridimensionalidade e visibilidade plástica. O espectáculo é constituído pelo conjunto desses quadros/excertos, que se sucedem como canções mas encadeados uns nos outros, recorrendo à manipulação vídeo e à representação.

Como um mergulho no mundo terrível de Maldoror, povoado de caudas de peixe voadoras, de polvos alados, de homens com cabeça de pelicano, de cisnes carregando bigornas, de acoplamentos horrorosos, de naufrágios, de violações, de combates sem tréguas… Sai-se deste mundo por uma intervenção exterior, como quem acorda no meio de um pesadelo, como a criança que é chamada para o jantar a meio da brincadeira – sem epílogo, sem conclusão, sem continuação!

Intervenientes

Texto Original Isidore Ducasse dito Conde de Lautréamont;
Selecção, Versão Portuguesa e Adaptação Adolfo Luxúria Canibal;
Música Miguel Pedro, Vasco Vaz, António Rafael e Mão Morta;
Encenação António Durães;
Cenografia Pedro Tudela;
Figurinos Cláudia Ribeiro;
Vídeo Nuno Tudela;
Desenho de Luz Manuel Antunes;
Interpretação Mão Morta (Adolfo Luxúria Canibal – voz / Miguel Pedro – electrónica e bateria / António Rafael – teclados e xilofone / Sapo – guitarra / Vasco Vaz – guitarra e xilofone / Joana Longobardi – baixo e contrabaixo);
Produção Theatro Circo e IMETUA – Cooperativa Cultural

Dia 19 de Maio :: Mão Morta :: Os Cantos de Maldoror
Grande Auditório
Inicio 22.00h
Preço único 10 €

in CAEP

2 comentários:

Anónimo disse...

Desilusão lautréamontana

Atravessado por uma espada e preso a uma cadeira, apodreço. A longa espada me empalou, pene-trando-me os costados na altura do pescoço e descendo pelos pulmões, trespassando-me o fígado, um rim e os intestinos. A ponta aguda saiu pela nádega direita e encravou-se no assento, aprisionando-me aqui, nesta cadeira, que é lentamente devorada pelos cupins. Não tardará a despencar, levando-me consigo em sua queda, uma massa putrefata de exalações malcheirosas que se espalhará pelo piso de azulejos grosseiros desta masmorra, tão velha quanto sou desagradável.

Como foi que vim parar aqui? Ora, questione os cupins. Eles talvez saibam a resposta, pois moram nesta cadeira há muito mais tempo. Eu só estava de passagem, mas algum engraçadinho metafísico resolveu brincar comigo, espetando-me como um coleóptero de coleção. Nacos de carne podre se desprendem quando tento me soltar, sacudindo as clavículas feito uma cocote alucinada. Minhas costelas resvalam na lâmina, limando-me a ossatura. Sobre minha cabeça as vespas depõem seus ovos, que brotam em larvas que me azucrinam os ouvidos. Por minhas narinas os vermes cavalgam buscando-me os miolos. Macios miolos, os meus, tenros e apetitosos para os vermes. Eles lambem os beiços e sugam-me a medula. Sob meus olhos, na órbita óssea, hospedou-se um casal de grilos que cricrila o dia inteiro. O côncavo ocular de minha caveira é seu dossel, e meus olhos murchos servem-nos como cobertas. Aconchegam-se protegidos ali. E quando caem da cama, durante algum pesadelo fortuito de inseto, é sobre minha língua amarrotada que caem. Então, cuspo-os fora. Mas eles sempre retornam, pois apreciam meus pontos de vista. Fileiras de formigas operárias saem-me pelas fissuras na pele, saqueando-me os pertences carnais. Um morcego negro enfiou-se sob o meu traseiro. Seus excrementos fétidos e corrosivos ajudam a depauperar ainda mais esta cadeira sobre a qual estou assentado. Em meu cóccix fez sua morada, saindo quando escurece e retornando pela manhã. Ah! Como o invejo!

A pele amarfanhada de minhas costas colou-se ao encosto da cadeira, soltando-se, expondo-me as omoplatas nuas. Minhas roupas apodreceram, os farrapos sendo arrastados pelos ratos, indo forrar suas tocas. Estou nu, literalmente nu até os ossos. Tremo de frio pela noite, de vergonha quando amanhece e de indignação ao meio-dia, pois as aranhas se assanham por entre a selva morta de meus ossos, tecendo delicadas teias, as quais pairam sobre minhas vísceras diluídas como acima de um pântano onde as moscas abundam.

Como vim parar aqui? Ora, pergunte às aranhas. Elas se utilizam de minha carcaça – logo, por ela se interessam. Quanto a mim, há muito perdi o interesse neste amontoado roído de ossos e desiludida podridão...

Anónimo disse...

http://recantodasletras.uol.com.br/autor.php?id=1514